Cartagena+30
Em 1984, um grupo de especialistas governamentais e reconhecidos juristas de diferentes países da América Latina reuniu-se na cidade colombiana de Cartagena das Índias para debater os problemas legais e humanitários que afetavam as pessoas em situação de refúgio naquela região.
O resultado deste encontro foi a “Declaração de Cartagena sobre Refugiados”, que se tornou um exemplo de como a solidariedade e a cooperação internacional podem responder, de maneira efetiva, as diferentes situações de deslocamento forçado nas Américas.
Em 2004, por ocasião do 20º aniversário da Declaração de Cartagena, vinte governos da América Latina e do Caribe adotaram a “Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional de Refugiados na América Latina”, que desde então funciona como o marco estratégico de governos, do ACNUR, da sociedade civil e da comunidade internacional.
No ano em que a Declaração de Cartagena comemora 30 anos, as conquistas alcançadas na região em relação à proteção das pessoas refugiadas, deslocadas e apátridas são celebradas, com uma reflexão sobre os novos desafios e os problemas que ainda persistem nesta temática.
Durante o ano de 2014, o processo comemorativo de “Cartagena +30” permitirá aos governos da América Latina e Caribe adotar um novo marco estratégico, com base em resultados mensuráveis, para impulsionar e fortalecer a proteção e as soluções duradouras para refugiados, apátridas, deslocados internos e outros grupos vulneráveis que buscam segurança e respeito aos direitos humanos na região.
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Considerada um marco para o trabalho humanitário em toda a América Latina e Caribe, a “Declaração de Cartagena sobre Refugiados” estabelece princípios e normas para a proteção internacional de refugiados e adota um conceito ampliado para o reconhecimento de pessoas nesta situação.
Além das condições previstas na Convenção da ONU de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo de 1967, a definição ampliada recomendada pela Declaração de Cartagena também considera como refugiado quem tenha “fugido de seus países porque sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, agressões estrangeiras, conflitos internos, violação generalizada de direitos humanos e outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.
Esta definição ampliada tem sido incorporada nas legislações nacionais de 14 países da região latino-americana.
Refletindo a generosa tradição de refúgio nas Américas, a “Declaração de Cartagena sobre Refugiados” estabelece uma série de recomendações para o tratamento humanitário e a busca de soluções duradouras para as pessoas em necessidade de proteção internacional.
Sua relevância vem sendo reiterada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), e também pela adoção de outros instrumentos regionais como a “Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas” (1994), a “Declaração e o Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina” (2004) e a “Declaração de Brasília sobre a Proteção de Pessoas Refugiadas e Apátridas” (2010).
Além disso, a Declaração de Cartagena vem servindo de base para mecanismos de cooperação entre os países latino-americanos e caribenhos, demonstrando a importância da solidariedade regional para a solução dos deslocamentos forçados nas Américas.
A “Declaração e o Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina”, adotada por 20 países latino-americanos, estabeleceu uma série de medidas para identificar soluções duradouras e inovadoras para os refugiados que vivem na região. O Plano de Ação do México destaca a importância da cooperação e da solidariedade internacional e da responsabilidade compartilhada, articulada com os compromissos de proteção e integração.
A “Declaração de Brasília sobre a Proteção de Pessoas Refugiadas e Apátridas” reafirmou a necessidade de buscar soluções duradouras dentro do Plano de Ação do México para enfrentar novos desafios na região.
Avanços
Os países da região das têm uma larga tradição de refúgio e proteção dos direitos humanos. Os padrões de proteção e a legislação dos refugiados são, em geral, elevados. Além de promover uma definição ampliada do conceito de refúgio, a Declaração de Cartagena contém elementos inovadores de proteção e soluções duradouras que integram esta tradição solidária ao Direito Internacional de Refugiados, ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário, incluindo o problema das pessoas deslocadas internamente em seus países.
O “Espírito de Cartagena” possibilitou estabelecer formas mais amplas de apoio às pessoas que são obrigadas a deixar seus países em busca de uma proteção internacional, tornando-as mais efetivas por meio do esforço conjunto entre governos, organismos internacionais, sociedade civil e os próprios refugiados e refugiadas, com o apoio da comunidade internacional.
Objetivos do processo Cartagena+30
Cartagena+30 é um processo estratégico no qual os países da América Latina e Caribe, mais que celebrar suas conquistas e avanços, reflitam sobre os desafios que ainda precisam superar em termos de proteção a refugiados e deslocados. O objetivo final é que se proponha um plano de ação sob o “Espírito de Cartagena”, que considere as necessidades atuais de proteção e seja um marco prático para a identificação de soluções no continente.
Para que este esforço seja efetivo, é preciso garantir a proteção e a colaboração dos governos e dos diversos atores civis envolvidos tanto na discussão quanto na prática da proteção de pessoas em situação de deslocamento forçado.
Novos desafios para a década 2014-2024
Apesar da solidariedade regional e da tendência de fortalecimento das medidas de proteção internacional de refugiados e outros deslocados por parte dos governos da região, a implementação de mecanismos completamente efetivos continua sendo um desafio.
Entre eles estão garantir o acesso ao refúgio, a qualidade dos procedimentos, a oportunidades de meios de vida sustentáveis, o gozo pleno dos direitos de refúgio e o alcance de soluções duradouras e sustentáveis.
Por outro lado, o equilíbrio entre as preocupações de segurança nacional e territorial dos Estados e suas obrigações no tema da proteção internacional segue um desafio que deve ser abordado por meio de um diálogo franco e construtivo.
Além disso, a região enfrenta situações novas que têm um impacto humanitário na população e que, em alguns casos, conduzem ao deslocamento forçado – tais como diferentes níveis de violência generalizada por atores não estatais. Ao mesmo tempo, processos políticos recentes poderiam abrir o caminho a uma futura solução dos conflitos de longa data.
Novos padrões de deslocamento forçado
Como em outras regiões do mundo, os padrões de deslocamento forçado mudaram na América Latina e no Caribe desde a redação da Convenção da ONU de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados.
Formas tradicionais de deslocamento causado pela violência, perseguições e as violações de direitos humanos continuam sendo frequentes. Mas novas causas de deslocamento agora incluem o crescimento populacional, a urbanização, insuficiências em matéria de governança, a insegurança alimentar e energética, a escassez de água, desastres naturais, mudanças climáticas e o impacto da recessão e da crise econômica internacional.
Na América Latina é possível também incluir o crime organizado transnacional e a violência decorrente dele como novo fator de deslocamento forçado tanto interno quanto para além das fronteiras dos países.
Fluxos mistos
Conflitos, pobreza extrema e mudanças climáticas costumam atuar cada vez mais em conjunto, provocando movimentos migratórios mistos.
As múltiplas causas dos movimentos migratórios requerem uma abordagem mais ampla na elaboração de respostas para proteção de pessoas: meios de vida sustentáveis, mais oportunidades de regularização migratória, informação, alternativas à detenção e o estabelecimento de mecanismos de identificação de pessoas com necessidade de proteção – com o devido encaminhamento aos procedimentos correspondentes.
Novas formas de violência
Em muitas situações de conflito interno, os atores do conflito não correspondem aos padrões tradicionais, sendo a maioria formada por agentes não estatais, cuja identidade e modus operandi são menos previsíveis.
Grupos armados e o crime organizado transnacional são exemplo das novas formas de violência que produzem deslocamento forçado. Existe um vazio normativo na região em relação ao deslocamento gerado por estes novos atores, o que leva à falta de informação sobre seu impacto humanitário na população civil e suas necessidades de proteção nacional e internacional.
Estes padrões de deslocamento forçado e novas formas de violência requerem uma resposta coordenada entre os Estados e a comunidade internacional, apoiados em mecanismos que vão além da segurança, incluindo a atenção às necessidades de proteção das pessoas afetadas por estas novas formas de violência.
Urbanização
Ao contrário de outros continentes, os refugiados e deslocados internos na América Latina vivem em povoados e cidades, e não em acampamentos. Isto representa uma pressão adicional sobre recursos urbanos escassos e contribui para gerar tensões sociais e violência.
Desde meados da década de 1990, a região não tem mais a experiência de campos de refugiados. As experiências e boas práticas de trabalho em contexto urbano, como o programa Cidades Solidárias, precisam seguir sendo aplicadas e renovadas. Em especial nas situações em que a população refugiada ou deslocada não quer voltar ao seu local habitual de residência, mesmo quando a segurança foi restabelecida.
Adequação do marco legal
O conceito de refugiado se ampliou na região para abarcar, por exemplo, as vítimas de conflitos, de violência generalizada e de violações de direitos humanos. Alguns países, entretanto, limitam a definição e sua responsabilidade aos refugiados e outras pessoas com necessidade de proteção internacional.
No entanto, ainda não se alcançou a adesão universal aos instrumentos internacionais sobre refugiados, sendo esta uma tarefa em aberto para alguns países do continente americano. Existe um importante vazio no acesso ao território e aos procedimentos para determinação da condição de refugiado que se reflete em políticas restritivas de refúgio, baixas porcentagens de reconhecimento de refugiados, adoção de procedimentos de pré-admissibilidade e a detenção administrativa de solicitantes de refúgio e refugiados por ingresso irregular no território.
Preocupações com segurança, incompatíveis com as responsabilidades de proteção internacional e o respeito aos direitos humanos, falta de recursos, novas ondas de racismo e xenofobia são algumas das causas da redução do espaço humanitário e de proteção na América Latina e no Caribe.
Também no continente americano existe uma lacuna entre os altos padrões da normativa interna e sua prática. Melhorar a aplicação da Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967, além da legislação nacional, é parte desta resposta.
Apatridia
Estima-se que 12 milhões de pessoas em todo o mundo sejam apátridas – não tenham nacionalidade reconhecida por nenhum país por questões de legislação. A falta de nacionalidade implica na negação dos direitos humanos fundamentais, tais como o acesso a registros de nascimento e documentos de identidade, serviços de educação e saúde, emprego formal, direito à propriedade, participação política e liberdade de circulação. Mulheres e crianças apátridas correm ainda mais risco.
A apatridia afeta a sociedade como um todo, pois excluir um setor da população pode criar tensões e reduzir as possibilidades de desenvolvimento econômico e social.
A apatridia pode ainda gerar o deslocamento forçado, principalmente quando ela é resultado da privação arbitrária da nacionalidade. Um primeiro e importante passo é aumentar a adesão dos países aos instrumentos internacionais sobre apatridia e sua efetiva implementação.
Soluções duradoura para a década 2014-2024
A cooperação internacional e a responsabilidade compartilhada seguem sendo chaves no alcance de soluções para pessoas em situação de deslocamento forçado.
A conquista da auto-suficiência e a integração local efetiva são os maiores desafios para os refugiados, que precisam competir com outros setores marginalizados de suas comunidades.
É necessário fazer mais para melhorar a qualidade do refúgio e assegurar a implementação efetiva dos direitos, incluindo políticas públicas, combate à exclusão social e à precariedade laboral.
Neste sentido, o enforque regional é chave e implica em ações coordenadas, por exemplo, diante de situações prolongadas de deslocamento.
Gênero, idade e diversidade
Os mecanismos de proteção devem considerar as necessidades especiais de grupos específicos, como crianças desacompanhadas, mulheres, grupos étnicos afetados por conflitos (como povos indígenas e afro-descendentes), pessoas perseguidas por sua identidade de gênero e orientação sexual.
Tanto as respostas de proteção quanto a busca de soluções duradouras devem considerar estas populações distintas, levando em conta que a perseguição pode ter relação com idade, gênero e diversidade.
Boletim informativo Nº 2 – Setembro 2014